Ao participar do Grito dos Excluídos no dia 7 de setembro, pude perceber o quanto necessitamos avançar nas lutas sociais.
Inicialmente as Forças Armadas mais uma vez deram demonstração de força, mas não de humanidade. Penso que será muito importante, quando, quem sabe um dia, os militares percebam que aquelas crianças, jovens e adultos, podem e devem ver muito mais do que demonstração de força e de armas, mas que a construção ideológica de um verdadeiro exército se faz de ações humanitárias, de ações de solidariedade, de gesto de amor. Admiração e respeito se conquista, não se impõe através de atributos bélicos. Esta é a forma de se reconstruir a imagem de uma instituição marcada por ações de violência e de desrespeito pela democracia conforme demonstrou o regime militar, sendo que na atualidade esta mesma força mantém insistentemente a posição contra a abertura dos arquivos da Ditadura.
Quanto a Polícia Militar, o desfile de motos e carros com suas sirenes ligadas seguiram no ritmo cotidiano, da segurança do medo, do toque de terror e apreensão. Não vi a Polícia Comunitária a distribuir panfletos com novos hábitos e posicionamentos, não recebi o bom dia e boa tarde, o aperto de mão, ou sorriso que nos remete a reações tão mais agradáveis e construtores das novas metas do milênio.
Civismo é amor a pátria, a nação, ao território, a unidade. Amo o meu país, mas fica a pergunta: devo amá-lo pole poderio bélico que possui ou pela qualidade fraterna das suas tropas e dos nossos demais conterrâneos?
Rapidamente após a passagem dos militares o trio do Grito dos excluídos entrou na Avenida, como a relembrar o passado e através de potente sonorização era entoada a música Para Não Dizer que não falei das Flores, “caminhando e cantando e seguindo a canção”. Entoavam as mesmas antigas e atuais verdades, luta pela garantia de terras, reforma agrária, respeito às comunidades periféricas, e seguindo a canção, como num passe de mágica ou em uma daquelas nuances mágicas de Fellini, militantes políticos sociais gritavam por anistia e pela implantação da Comissão da Verdade. A cena era perfeita, os militantes seguiam os militares, inversão de posição e de valores, com uma única e grande diferença, sem armas, sem violência, e de forma republicana, não para perseguir pessoas, mas a debater idéias e conceituar um novo momento, como deve acontecer em uma verdadeira sociedade democrática. Os professores queriam melhor ensino, o que de fato poderia transformar todo o desfile do 7 de setembro e todo o olhar da sociedade em algo realmente melhor e mais digno.
Em meio a tanta brutalidade visual e machista, a Marcha das Vadias insistia com toda a razão e pertinência na garantia pelos direitos das mulheres sobre o próprio corpo, e muito mais além na construção de uma sociedade com conceitos estruturantes feministas e necessários para alçarmos uma sociedade mais justa e igualitária. O interessante é que o Grito dos Excluídos foi idealizado pela CNBB, mas elas, as mulheres, as vadias, as santas, as negras, as lésbicas, as brancas, as intelectuais, as periféricas, as partidárias, as do subúrbio, estavam todas lá a dizer: independente de onde estejamos, e de onde viemos, temos uma certeza, somos mulheres e precisamos garantir os nossos direitos e fazermos as nossas vozes ressoarem para que as conquistas significativas possam acontecer. Sabem elas que não existem dádivas e concessões, em uma sociedade machista, sexista, racista, eurocêntrica e de formação religiosa como a nossa. Daí somente a luta é que garantirá a transformação. E ontem, assim como fazem cotidianamente, elas lutaram.
Políticos foram poucos, só aqueles que entendem a dimensão da data independente dos governos, ou que não tiveram outros compromissos em suas bases eleitorais, seja na capital ou interior, mas no final das contas todos os que lá estavam eram os de esquerda.
Famílias passeavam, compravam pipoca, cataventos, refrigerantes e água, a Avenida Sete de Setembro foi realmente dos excluídos. Durante toda a extensão do percurso, seja marchando, seja assistindo, seja protestando, ela teve somente uma cara, a verdadeira cara de Salvador, a face de uma Roma Negra que segue acéfala a procura de um novo tempo e de uma nova dimensão conceitual de sociedade. Que assim seja, mais moderna e inclusiva.
Marcos Rezende.
Historiador, Conselheiro Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça e
Assessor da Comissão de Promoção da Igualdade ALBA.